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quinta-feira, 3 de junho de 2010

O vendedor de palavras



Ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, "indigência lexical". Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs.

Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia: "Histriônico — apenas R$ 0,50!".


Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta curiosos parasse e perguntasse.   — O que o senhor está vendendo?


— Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinqüenta centavos como diz a placa.

— O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos

— O senhor sabe o significado de histriônico?

— Não.


— Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.

— Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.

— O senhor tem dicionário em casa?


— Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.


— O senhor estava indo à biblioteca?

— Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.

— Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinqüenta centavos de real!

— Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?


— Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.

— O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?


— O senhor conhece Nélida Piñon?


— Não.


— É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui.

— E por que o senhor não vende livros?

— Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.

— E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.


— A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona-de-casa ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.


— O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...


— Jactância.

— Pegar um livro velho...


— Alfarrábio.


— O senhor me interrompe!


— Profaço.


— Está me enrolando, não é?


— Tergiversando.

— Quanta lenga-lenga...


— Ambages.

— Ambages?


— Pode ser também evasivas.


— Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!


— Pusilânime.


— O senhor é engraçadinho, não?


— Finalmente chegamos: histriônico!


— Adeus.


— Ei! Vai embora sem pagar?


— Tome seus cinqüenta centavos.


— São três reais e cinqüenta.


— Como é?


— Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.

— Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?


— É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?

— Tem troco para cinco?

A SÍNDROME DE VIRA-LATAS

Circula na internet um excelente artigo de Leonardo Boff, no qual ele trata o comportamento da imprensa brasileira na cobertura da política externa do governo Lula sob a ótica da Fenomenologia do Espírito, de Hegel, que analisa a dialética do senhor e do servo. “O senhor se torna tanto mais senhor quanto mais o servo internaliza em si o senhor, o que aprofunda ainda mais seu estado de servo.” (*)


Boff identifica este comportamento na imprensa brasileira, que já se revela há muito tempo, mas ficou ainda mais explícito na mediação conduzida por Lula e pelo primeiro-ministro da Turquia da crise nuclear iraniana. O sucesso da missão de Lula, reconhecido na maior parte do mundo, foi negado pela imprensa brasileira, que tentou desqualificá-la com argumentos dignos dos mais raivosos falcões norte-americanos.

Para Boff, as opiniões da imprensa brasileira e da maioria de seus colunistas revelam que essas pessoas “têm saudades deste senhor imperial internalizado” e “não admitem que o Brasil ganhe relevância mundial e se transforme num ator político importante”. “Querem vê-lo no lugar que lhe cabe: na periferia colonial, alinhado ao patrão imperial, qual cão amestrado e vira-lata.”

Afinal, onde já se viu um presidente brasileiro não se levantar para o presidente norte-americano, como fez Lula em 2003, durante a reunião do G8, em Evian, na França. Questionado sobre a atitude, já que os demais presentes se levantaram, Lula respondeu singelamente: “Ninguém se levantou quando eu entrei.”

Os nossos colunistas não dispensaram tantas linhas de condenação quanto escrevem agora quando o chanceler brasileiro no governo de Fernando Henrique Cardoso tirou os sapatos para entrar nos Estados Unidos. A atitude de total subserviência já está assimilada no complexo de vira-latas, que perdemos no futebol ao vencermos a Copa de 1958, mas que se mantém na imprensa brasileira em termos de política externa.

O assunto parece não ter fim e foi retomado pelo jornalista Elio Gaspari na coluna que escreve para os jornais O Globo e Folha de S.Paulo. O jornalista classifica a diplomacia de Lula de “amoral”, pelo “beneplácito” que tem com o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, e justifica a atitude semelhante do governo turco com o argumento pequeno de ser um país vizinho ao Irã, enquanto Brasília está a 11 mil quilômetros de distância.

Mais uma vez a síndrome de vira-latas se revela. Ao Brasil, cabe cuidar do seu mundinho, quiçá dos seus vizinhos sul-americanos. Por que se meter em questões tão distantes, já que somos um país de terceira? É a lógica do senhor totalmente arraigada e se manifestando sempre que se tenta sair dela.

A cura de síndromes exige tratamentos psicológicos e grandes vitórias. Para superar o medo de passar em túneis é preciso cruzá-los em algum momento para ver que não oferecem perigo. A imprensa brasileira ainda não se livrou do complexo subalterno que o país teve na arena internacional durante grande parte de sua história. Se comporta como alguém psicologicamente abalado que se recusa a enxergar o que está a sua frente.

(*) O artigo de Leonardo Boff citado pelo colunista pode ser lido  no Espaço Livre.