Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".
Em vez Havana?
O debate sobre a chegada de médicos cubanos é vergonhoso.
Do ponto de vista da saúde pública, temos um quadro conhecido. Faltam médicos em milhares de cidades brasileiras, nenhum doutor formado no país tem interesse em
Respeitando o direito individual de cada pessoa resolver seu
destino, o governo Dilma decidiu procurar médicos estrangeiros. Não
poderia haver atitude mais democrática, com respeito às decisões de cada
cidadão.
O Ministério da Saúde conseguiu atrair médicos de Portugal,
Espanha, Argentina, Uruguai. Mas continua pouco. Então, o governo
resolveu fazer o que já havia anunciado: trazer médicos de Cuba.
Como era de prever, a reação já começou.
E como eu sempre disse neste espaço, o conservadorismo brasileiro
não consegue esconder sua submissão aos compromissos nostálgicos da
Guerra Fria, base de um anticomunismo primitivo no plano ideológico e
selvagem no plano dos métodos. É uma turma que se formou nesta escola,
transmitiu a herança de pai para filho e para netos. Formou jovens
despreparados para a realidade do país, embora tenham grande intimidade
com Londres e Nova York.
Hoje, eles repetem o passado como se estivessem falando de algo que tem futuro.
Foi em nome desse anticomunismo que o país enfrentou 21 anos de
treva da ditadura. E é em nome dele, mais uma vez, que se procura
boicotar a chegada dos médicos cubanos com o argumento de que o Brasil
estará ajudando a sobrevivência do regime de Fidel Castro. Os jornais,
no pré-64, eram boicotados pelas grandes agencias de publicidade
norte-americanas caso recusassem a pressão americana favorável à
expulsão de Cuba da OEA. Juarez Bahia, que dirigiu o Correio da Manhã,
já contou isso.
Vamos combinar uma coisa. Se for para reduzir economia à política,
cabe perguntar a quem adora mercadorias baratas da China Comunista: qual
o efeito de ampliar o comércio entre os dois países? Por algum critério
– político, geopolítico, estético, patético – qual país e qual regime
podem criar problemas para o Brasil, no médio, curto ou longo prazo?
Sejamos sérios. Não sou nem nunca fui um fã incondicional do regime
de Fidel. Já escrevi sobre suas falhas e imperfeições. Mas sei
reconhecer que sua vitória marcou uma derrota do império norte-americano
e compreendo sua importância como afirmação da soberania na América
Latina.
Creio que os problemas dos cidadãos cubanos, que são reais, devem ser resolvidos por eles mesmos.
Como alguém já lembrou: se for para falar em causas humanitárias
para proibir a entrada de médicos cubanos, por que aceitar milhares de
bolivianos que hoje tocam pedaços inteiros da mais chique indústria de
confecção do país?
Denunciar o governo cubano de terceirizar seus médicos é apenas
ridículo, num momento em que uma parcela do empresariado brasileiro quer
uma carona na CLT e liberar a terceirização em todos os ramos da
economia. Neste aspecto, temos a farsa dentro da farsa. Quem é
radicalmente a favor da terceirização dos assalariados brasileiros quer
impedir a chegada, em massa, de terceirizados cubanos. Dizem que são
escravos e, é claro, vamos ver como são os trabalhadores nas fazendas de
seus amigos.
Falar em democracia é um truque velho
demais. Não custa lembrar que se fez isso em 64, com apoio dos mesmos
jornais que 49 anos depois condenam a chegada dos cubanos, erguendo o
argumento absurdo de que eles virão fazer doutrinação revolucionária por
aqui. Será que esse povo não lê jornais?
Fidel Castro ainda tinha barbas escuras quando parou de falar em
revolução. E seu irmão está fazendo reformas que seriam pura heresia há
cinco anos.
O problema, nós sabemos, não é este. É material e mental.
Nossos conservadores não acharam um novo marqueteiro para arrumar
seu discurso para os dias de hoje. São contra os médicos cubanos, mas
oferecem o que? Médicos do Sírio Libanês, do Einstein, do Santa
Catarina?
Não. Oferecem a morte sem necessidade, as pragas bíblicas. Por isso
não têm propostas alternativas nem sugestões que possam ser discutidas.
Nem se preocupam. Ficam irresponsavelmente mudos. É criminoso. Querem
deixar tudo como está. Seus médicos seguem ganhando o que podem e cada
vez mais. Está bem. Mas por que impedir quem não querem receber nem
atender?
Sem alternativa, os pobres e muito pobres serão empurrados para
grandes arapucas de saúde. Jamais serão atendidos, nem examinados. Mas
deixarão seu pouco e suado dinheiro nos cofres de tratantes sem
escrúpulos.
Em seu mundo ideal, tudo permanece igual ao que era antes. Mas não.
Vivemos tempos em que os mais pobres e menos protegidos não aceitam sua
condição como uma condenação eterna, com a qual devem se conformar em
silêncio. Lutam, brigam, participam. E conseguem vitórias, como todas as
estatísticas de todos os pesquisadores reconhecem. Os médicos, apenas,
não são a maravilha curativa. Mas representam um passo, uma chance para
quem não tem nenhuma. Por isso são tão importantes para quem não tem o
número daquele doutor com formação internacional no celular.
O problema real é que a turma de cima não suporta qualquer melhoria
que os debaixo possam conquistar. Receberam o Bolsa Família como se
fosse um programa de corrupção dos mais humildes. Anunciaram que as leis
trabalhistas eram um entrave ao crescimento econômico e tiveram de
engolir a maior recuperação da carteira de trabalho de nossa história.
Não precisamos de outros exemplos.
Em 2013, estão recebendo um primeiro projeto de melhoria na saúde pública em anos com a mesma raiva, o mesmo egoísmo.
Temem que o Brasil esteja mudando, para se tornar um país capaz de
deixar o atraso maior, insuportável, para trás. O risco é mesmo este: a
poeira da história, aquele avanço que, lento, incompleto, com progressos
e recuos, deixa o pior cada vez mais distante.
É por essa razão, só por essa, que se tenta impedir a chegada dos
médicos cubanos e se tentará impedir qualquer melhoria numa área em que a
vida e a morte se encontram o tempo inteiro.
Essa presença será boa para o povo. Como já foi útil em outros
momentos do Brasil, quando médicos cubanos foram trazidos com
autorização de José Serra, ministro da Saúde do governo de FHC, e
ninguém falou que eles iriam preparar uma guerrilha comunista. Graças
aos médicos cubanos, a saúde pública da Venezuela tornou-se uma das
melhores do continente, informa a Organização Mundial de Saúde. Também
foram úteis em Cuba.
Os inimigos dessas iniciativas temem qualquer progresso. Sabem que
os médicos cubanos irão para o lugar onde a morte não encontra
obstáculo, onde a doença leva quem poderia ser salvo com uma aspirina,
um cobertor, um copo de água com açúcar. Por isso incomodam tanto. Só
oferecem ameaça a quem nada tem a oferecer aos brasileiros além de seu
egoísmo.
http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/colunista/48_PAULO+MOREIRA+LEITE
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