PODERIA TER SIDO SUA FILHA, SUA IRMÃ, SUA NAMORADA...
Nilda
Carvalho Cunha foi presa na madrugada de 19 para 20 de agosto de 1971,
no cerco montado ao apartamento onde morreu Iara Iavelberg. Foi levada
para o Quartel do Barbalho e, depois, para a Base Aérea de Salvador. Sua
prisão é confirmada no relatório da Operação Pajuçara, desencadeada
para capturar ou eliminar o guerrilheiro Carlos Lamarca e seu grupo.
Nilda
foi liberada no início de novembro do mesmo ano, profundamente
debilitada em consequência das torturas sofridas. Morreu em 14 de
novembro, com sintomas de cegueira e asfixia. Ela tinha acabado de
completar 17 anos quando foi presa. Fazia o curso secundário e
trabalhava como bancária na época em que passou a militar no MR-8 e a
viver com Jaileno Sampaio.
[...] um pouco do que Nilda contou de sua prisão:
–
Você já ouviu falar de Fleury? Nilda empalideceu, perdia o controle
diante daquele homem corpuloso. – Olha, minha filha, você vai cantar na
minha mão, porque passarinhos mais velhos já cantaram. Não é você que
vai ficar calada [...]. Dos que foram presos no apartamento do edifício
Santa Terezinha, apenas Nilda Cunha e Jaileno Sampaio ficaram no Quartel
do Barbalho. Ela, aos 17 anos, ele, com 18. – Mas eu não sei quem é o
senhor... – Eu matei Marighella. Ela entendeu e foi perdendo o controle.
Ele completava: – Vou acabar com essa sua beleza – e alisava o rosto
dela. Ali estava começando o suplício de Nilda. Eram ameaças seguidas,
principalmente as do major Nilton de Albuquerque Cerqueira. Ela ouvia
gritos dos torturados, do próprio Jaileno, seu companheiro, e se
aterrorizava com aquela ameaça de violência num lugar deserto. Naquele
mesmo dia vendaram-lhe os olhos e ela se viu numa sala diferente quando
pôde abri-los. Bem junto dela estava um cadáver de mulher: era Iara, com
uma mancha roxa no peito, e a obrigaram a tocar naquele corpo frio. No
início de novembro, decidem libertá-la. [...] Na saída, descendo as
escadas, ela grita: – Minha mãe, me segure que estou ficando cega. Foi
levada num táxi, chorando, sentindo-se sufocada, não conseguia respirar.
Daí para a frente foi perdendo o equilíbrio: depressões constantes,
cegueiras repentinas, às vezes um riso desesperado, o olhar perdido. Não
dormia, tinha medo de morrer dormindo, chorava e desmaiava. – Eles me
acabaram, repetia sempre [...].
Em
4 de novembro, Nilda foi internada na clínica Amepe, em Salvador [...]
No mesmo dia, os enfermeiros tentaram evitar a entrada do major Nilton
de Albuquerque Cerqueira em seu quarto de hospital, mas não conseguiram.
Na presença da mãe, ele ameaçou Nilda, disse que parasse com suas
frescuras, senão voltaria para o lugar que sabia bem qual era. O estado
de Nilda se agravou, e ela foi transferida para o sanatório Bahia, onde
faleceu, em 14 de novembro. No seu prontuário, constava que não comia,
via pessoas dentro do quarto, sempre homens, soldados, e repetia
incessantemente que ia morrer, que estava ficando roxa. A causa da morte
nunca foi conhecida. O atestado de óbito diz: “edema cerebral a
esclarecer”.
(Trecho
do livro Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino
Tatiana Merlino – São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.)
Nilda
não foi violentada apenas por seus torturados. Foi violentada pelos
donos dos meios de comunicação que apoiaram e sustentaram o regime
militar. Foi violentada também por todos aqueles empresários e políticos
reacionários que financiaram a repressão e lucraram com seu sangue, com
suas lágrimas e com sua dor.
Nilda
poderia ter sido uma adolescente comum, feliz, cheia de sonhos. Mas a
ganância, o egoísmo e a brutalidade de uma elite privilegiada e sem
compromisso com nosso país, deram esse trágico fim a sua vida. Esta
elite jogou milhares de jovens na clandestinidade, os torturou e os
matou.
Nilda
ainda vive em cada um de nós, que acreditamos e lutamos pelos direitos
humanos, pela vida, pela justiça e pela igualdade social. Mas ela
continua sendo torturada nos dias de hoje. Ela está sendo torturada pela
mídia que é contra os julgamentos dos criminosos da ditadura militar. E
ela continuará sendo torturada enquanto políticos e empresários que
apoiaram esse regime bárbaro continuarem livres. Ela foi torturada pelos
atuais ministros do Supremo Tribunal Federal que recusaram o pedido de
condenação dos praticantes de violações contra os direitos humanos nos
porões do exército.
Não
deixe que aqueles que tentaram apagar Nilda da História tenham êxito.
Nosso país somente terá democracia plena quando acertar as contas com
seu passado. Apóie a Comissão da Verdade e Reconciliação que irá julgar
os crimes praticados pelos órgãos de repressão do regime militar. Crimes
contra a humanidade não prescrevem!
O martírio da jovem Nilda Carvalho Cunha, 17 anos, nos porões da ditadura