sábado, 22 de dezembro de 2012
Representação criminal na lei Maria da Penha? Questionamentos em relação à representação criminal a crimes de lesão corporal contra a mulher
Desde a entrada em vigor da Lei
Maria da Penha, como é mais conhecida a Lei nº 11.340/2006, questionava-se, na
doutrina e nos tribunais, intensamente, sobre a necessidade ou não de
representação criminal para a apuração e processamento dos crimes de lesão corporal
de natureza leve praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher.
Apreciando a matéria, o Superior Tribunal de Justiça chegou a entender pela
prescindibilidade da representação criminal, conforme transcrito abaixo:
“1. Esta Corte, interpretando o art. 41 da Lei 11.340/06, que
dispõe não serem aplicáveis aos crimes nela previstos a Lei dos Juizados
Especiais, já resolveu que a averiguação da lesão corporal de natureza leve
praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher independe de
representação. Para esse delito, a Ação Penal é incondicionada (REsp.
1.050.276/DF, Rel. Min. JANE SILVA, DJU 24.11.08). 2. Se está na Lei 9.099/90,
que regula os Juizados Especiais, a previsão de que dependerá de representação
a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais e lesões culposas (art.
88) e a Lei Maria da Penha afasta a incidência desse diploma despenalizante,
inviável a pretensão de aplicação daquela regra aos crimes cometidos sob a
égide desta Lei. (Superior Tribunal de Justiça, 5ª Turma, Habeas Corpus nº
91540/MS, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, decisão unânime, julgado em
19/02/2009, DJ de 13/04/2009)”.
Luís Flávio Gomes e Alice Bianchini em Lei
da violência contra a mulher: renúncia e representação da vítima defendem essa
tese comentam sobre o
assunto: “Considerando-se o disposto no art. 41 da nova lei, que determinou que
aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099/1995, já não se
pode falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples
atinge a mulher que se encontra na situação da Lei 11.340/2006 (ou seja: numa
ambiência doméstica, familiar ou íntima) (nesse sentido cf. também: José Luiz
Joveli; em sentido contrário: Fernando Célio de Brito Nogueira). Nesses crimes,
portanto, cometidos pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe, pelo
empregador contra a empregada doméstica etc., não se pode mais falar em
representação, isto é, a ação penal transformou-se em pública incondicionada (o
que conduz à instauração de inquérito policial, denúncia, devido processo
contraditório, provas, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). Esse ponto,
sendo desfavorável ao acusado, não pode retroagir (isto é: não alcança os
crimes ocorridos antes do dia 22.09.06). Não existe nenhuma incompatibilidade,
de outro lado, entre o art. 41 e o art. 16.
O primeiro excluiu a representação
nos delitos de lesão corporal culposa e lesão simples.
No segundo existe
expressa referência à representação da mulher. Mas é evidente que esse ato só
tem pertinência em relação a outros crimes (ameaça, crimes contra a honra da
mulher, contra sua liberdade sexual quando ela for pobre etc.). Aliás, nesses
outros crimes, a autoridade policial vai colher a representação da mulher
(quando ela desejar manifestar sua vontade) logo no limiar do inquérito
policial (art. 12, I, da Lei 11.340/2006)”.
A Lei Maria da Penha afasta a incidência desse diploma
despenalizante, inviável a pretensão de aplicação daquela regra aos crimes
cometidos sob a égide desta Lei
Da mesma forma que o entendimento do autor Guilherme de Souza
Nucci em Código Penal Comentado:
“Se alguma vantagem houve, está concentrada na ação penal, que passa a ser
pública incondicionada, em nossa visão, retornando para a iniciativa do
Ministério Público, sem depender da representação. Isto porque o art. 88 da Lei
9.099/95 preceitua que dependerá de representação a ação penal relativa aos
crimes de lesões corporais leves (prevista no caput do art. 129) e lesões culposas
(constante do § 6º do mesmo artigo). Ora, a violência doméstica, embora lesão
corporal, cuja descrição típica advém do caput, é forma qualificada
da lesão, logo, não mais depende de representação da vítima.”
Contudo, a partir do julgamento do Habeas Corpus nº 113608/MG,
aquela Corte começou a modificar este entendimento asseverando, naquele
julgado, pela necessidade da representação criminal para a apuração e
processamento dos crimes de lesão corporal de natureza leve praticada com
violência doméstica e familiar contra a mulher, in verbis:
“1. O art. 16 da Lei nº 11.340/06 é claro ao autorizar a
retratação, mas somente perante o juiz. Isto significa que a ação penal, na
espécie, é dependente de representação. 2. Outro entendimento contraria a nova
filosofia que inspira o Direito Penal, baseado em princípios de conciliação e
transação, com o objetivo de humanizar a pena e buscar harmonizar os sujeitos
ativo e passivo do crime”. (Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, Habeas
Corpus nº 113608/MG, rel. Min. Og Fernandes, rel. para acórdão Min. Celso
Limongi, decisão por maioria, julgado em 05/03/2009, DJ de 03/08/2009).
“I - A intenção do legislador ao afastar a aplicação da Lei nº
9.099/95, por intermédio do art. 41 da Lei Maria Penha, restringiu-se, tão
somente, à aplicação de seus institutos específicos despenalizadores - acordo
civil, transação penal e suspensão condicional do processo. II - A ação penal,
no crime de lesão corporal leve, ainda que praticado contra a mulher, no âmbito
doméstico e familiar, continua sujeita à representação da ofendida, que poderá
se retratar nos termos e condições estabelecidos no art. 16 da Lei nº 11.340/06
(Precedentes)”. (Superior Tribunal de Justiça, 5ª Turma, Habeas Corpus nº
137620/DF, rel. Min. Felix Fischer, decisão por maioria, julgado em 08/09/2009,
DJ de 16/11/2009.)
Julio Fabbrini Mirabete em Código
Penal Interpretado adota
esta última linha de raciocínio: “Nos §§ 9º e 10 do art. 129, acrescentados
pela Lei 10.886, de 17.6.2004, sob a nova rubrica
Violência Doméstica, prevêem
outras formas qualificadas de lesão corporal dolosa. No § 9º, que se aplica à
lesão corporal leve (art. 129, caput), descrevem-se como qualificadoras algumas
circunstâncias previstas como agravantes genéricas (art. 61, II, e e f) e que
se referem a vínculos de parentesco, casamento, relação doméstica, de
coabitação ou de hospitalidade, as quais já foram examinadas (item 61.4).
Acrescentaram-se, porém as relações com companheiro ou pessoa com que conviva
ou tenha convivido o agente, evitando-se a discussão nas hipóteses de união
estável ou outro vínculo de relacionamento amoroso ou de estarem os cônjuges ou
companheiros divorciados ou separados, judicialmente ou de fato, situações nas
quais, por ausência de expressa previsão legal, ou porque não mais subsistente
a necessária relação de fidelidade, no segundo caso, vinha-se afastando a
agravante genérica. Deve-se incluir, porém, no alcance da norma também a vítima
com quem desfrutava o agente de um convívio doméstico, ainda que de natureza
diversa da relação conjugal ou união estável, como enteados, parentes, etc. A
pena de detenção cominada para essa forma qualificada, que era de seis meses a
um ano, foi alterada para três meses a três anos pela Lei 11.340, de 7.8.2006.
Assim, embora leves as lesões, o crime praticado com violência doméstica não
mais constitui infração de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei 9.099/95,
com redação dada pela Lei 11.313, de 28.06.2006). A Lei 11.340 também
acrescentou ao artigo o § 11, que determina o acréscimo de um terço, nas
hipóteses previstas no § 9º, se a vítima é pessoa portadora de deficiência.
Constituindo a violência doméstica forma qualificada do crime de lesão corporal
leve (art. 129, caput, e § 9º), a ação penal depende de representação do
ofendido diante do que dispõe o art. 88 da Lei 9.099, de 26.9.1995”.
Geraldo Prado, autor de Comentários à lei de violência
doméstica e familiar contra a mulher, também acompanha tal
entendimento: “Embora de início tenha me inclinado, com muita resistência, a
adotar a tese de que o crime de lesão corporal dolosa leve, em caso de
violência doméstica e familiar contra a mulher, tenha voltado a ser de ação
penal pública incondicionada, mudei de ideia (tenho, pois, de me retratar!). As
teses de política criminal, assentadas no objetivo de pacificação social em
mãos da vítima, não me seduzem, tampouco têm o poder jurídico de prevalecer
sobre a Constituição da República, que atribui ao Legislativo o monopólio de
traçar as linhas gerais de política criminal, valendo-se da lei. A melhor
solução de política criminal estaria em atribuir ao Ministério Público, no
âmbito da ação penal pública, espaço de atuação que à luz da lei permitisse explorar
o caráter restaurativo de determinadas intenções ou mesmo abrir mão do
exercício da própria ação penal quando este exercício viesse a ser considerado
excessivo ou inadequado à tutela dos interesses da vítima. Não foi essa a
escolha, e o confronto doutrinário entre opções político-criminais cede diante
da legalidade constitucional. No caso da lesão corporal dolosa leve, todavia,
não há como se interpretar literalmente o artigo 41 da Lei Maria da Penha.
Menos porque o crime está definido no Código Penal e a Lei dos Juizados
Especiais Criminais tenha sido empregada tão-somente como meio de modificar a
disciplina geral da matéria, no Código Penal. [...] Com efeito, a mudança
introduzida em nosso ordenamento, no que toca ao crime de lesões corporais leves,
incorporou a experiência cotidiana de anos de aplicação do Código Penal, com
frequente invocação de princípios de bagatela e de difusa ausência de
interesse, em âmbito de política criminal, a justificar o emprego da sanção
penal”.
E assim também é o pensamento de
Pedro Rui da Fontoura Porto (autor deViolência
doméstica e familiar contra a mulher): “Sem sombra de dúvidas, se a
exigência de representação é de fato uma medida despenalizadora, não menos
certo é que deixar esta decisão no poder da vítima, que pode então utilizá-la
como instrumento de barganha para uma justa reparação de danos civis, atende a
dois objetivos: punir o sujeito ativo e beneficiar direta e imediatamente a
própria vítima. Com efeito, é importante lembrar que o poder de representar pressupõe
o de conciliar, de sorte que, mantida a representação, assegura-se também a
conciliação e, nesse caso, o potencial de barganha da vítima, normalmente
fragilizada e suscetível a acordos que lhe pudessem ser prejudiciais, é
fortalecido pela faculdade de decidir acerca da deflagração do processo penal e
pela inexistência de outras medidas despenalizadoras posteriores que poderiam
ser ainda mais vantajosas ao varão agressor. [...] De início, o fato de o
legislador ter retirado do texto original a literal referência à ação penal
pública incondicionada tem uma explicação muito lógica: o texto tal como
elaborado seria totalmente prejudicial à vítima mulher. Veja-se que o texto
vertido no art. 30 do projeto original condicionava à representação, toda e
qualquer violência doméstica e familiar contra a mulher. Destarte, considerando
a amplitude dos arts. 5° e 7° da Lei 11.340/06, até mesmo delitos sexuais com
violência real, tentativas de homicídio, extorsões, lesões graves, tortura,
todos ficariam condicionados à representação, já que o dispositivo não fazia
qualquer distinção. Por aí se vê que andou bem o legislador em retirar logo do
texto um dispositivo tão nefasto. Diferente, é claro, quando se trata de lesões
leves, traduzidas muitas vezes em algumas escoriações e equimoses. Por outra, o
fato de tratar-se a violência doméstica contra a mulher de um atentado contra
os direitos humanos, conforme estatui o art. 6° da LMP, também não impõe a
conclusão de que se trate de um bem indisponível. É pacífico que a integridade
física é disponível, salvo quando ameace significativamente a própria vida
humana ou indique insanidade mental, tanto que cirurgias eletivas, inclusive
plásticas, tatuagens, participação em esportes radicais, artes marciais, são
considerados exercício regular de um direito. Ademais, há muitos outros
direitos, normalmente classificados como direitos fundamentais, que também são
disponíveis: a propriedade e a liberdade são exemplos disso. Veja-se que os
próprios autores citados tecem críticas ao art. 6° da LMP, asseverando sua
desnecessidade, visto que qualquer violência contra a pessoa representa um
atentado contra os direitos humanos. [...] Concluindo, estamos em que a razão
mais crucial e elevada para a admissão da representação, nos casos de lesões
leves praticadas com violência doméstica contra a mulher, reside no caráter
personalíssimo do fato, que recomenda, por ressalva à intimidade da própria
vítima e ao seu livre-arbítrio, prevaleça sua vontade. Nesse sentido, não há
como ignorar as preciosas considerações de Maria Lúcia Karan, a seguir
transcritas: Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com
uma pena o parceiro da mulher, contra sua vontade, está se subtraindo dela,
formalmente ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar com
aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar-lhe o direito à
liberdade de que é titular, para tratá-la como coisa fosse, submetida à vontade
de agentes do Estado que, inferiorizando-a e vitimizando-a, pretendem saber o
que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer
relacionar e sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido
é ou não um ‘agressor’ - ou que, pelo menos, não deseja que seja punido.”
Isto se deve, dentre outros fatos, à inexistência de manifestação
definitiva do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, o que somente veio a
ocorrer no julgamento da ADI nº 4424, proposta pelo Procurador-Geral da
República, em que restou assentada a natureza incondicionada da ação penal em caso
de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher
no ambiente doméstico.
Derradeiramente, necessário assinalar que se concorda com o
entendimento do Pretório Excelso, com a única ressalva de que o guardião da
Constituição Federal de 1988 demorou muito para decidir a questão, em grande
parte pelo atraso na provocação do Procurador-Geral da República, somente
realizada em meados de 2010, isto quando a lei comentada é de 2006.
André Gonzalez Cruz
Especialista em Ciências Criminais pela UGF, mestrando em
Políticas Públicas pela UFMA e Doutorando em Direito pela UNLZ.
Fonte:http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/79/artigo274893-1.asp
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