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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Marchadeiras do retrocesso


Marchadeiras do retrocesso

Paulo Moreira Leite
Jornalista desde os 17 anos, foi diretor de redação de ÉPOCA e do Diário de S. Paulo. Foi redator chefe da Veja, correspondente em Paris e em Washington. É autor do livro A mulher que era o general da casa -- Histórias da resistência civil à ditadura. 
Em 1964, havia as marchadeiras do golpe militar. Eram aquelas senhoras que, de terço da mão, foram às ruas para denunciar a corrupção e a subversão, acreditando que iriam salvar a democracia.
Só ajudaram a instalar uma ditadura militar que o país até hoje não esqueceu.
Em 2012, temos uma marcha do retrocesso. Não há um golpe de Estado à vista.
Mas temos homens e mulheres em campanha para que o Supremo passe por cima do artigo 55 da Constituição e casse o mandato de três parlamentares condenados pelo mensalão.
Este número deve chegar a quatro em janeiro do ano que vem, quando José Genoíno deve assumir uma vaga como suplente.
A lei diz que, para cassar o mandato de um parlamentar, é preciso que a medida seja aprovada no Câmara ou no Senado, por maioria absoluta, em votação secreta, após ampla defesa.
Em vez de procurar votos no Congresso, como é obrigado a fazer todo cidadão interessado em mudanças de seu interesse, as novas marchadeiras querem uma cassação na marra.
Assim: o STF manda e o Congresso cumpre – mesmo que a Constituição diga outra coisa.
A desculpa é que estão preocupados com o decoro. Acham feio pensar que um deputado condenado a cumprir pena em regime fechado conserve suas prerrogativas de parlamentar. Concordo que é estranho. Muita gente acha que proibir a pena de morte é estranho. Mas está lá na Constituição. Muita gente acha que os índios e os negros não deveriam ter suas terras nem seus quilombos. Mas está lá.
Falta de decoro, que é sinônimo de falta de vergonha, de honradez, é defender que se desrespeite a Constituição.
Mas marchadeiros e marchadeiras são  assim. Foram à rua em 64 para combater a corrupção e a subversão e jogaram o país numa ditadura que só iria encerrar-se com a nova Constituição, em 1988, aquela mesma que se ameaça agora.
Não custa lembrar que o debate sobre cassação de mandatos tem poucas consequências práticas. Mesmo que a Câmara, cumprindo uma prerrogativa que a Constituição lhe oferece, resolva preservar seus mandatos,  eles sequer poderão voltar às urnas em 2014.  Já estarão enquadrados na Lei do Ficha Limpa. O que se discute, acima de tudo, é um direito.
É isso que se pode atingir.
Em 1988, 407 parlamentares votaram a favor do artigo 55, que define quem tem poderes para cassar mandato de senadores e deputados. Deixaram lá, por escrito, explicitamente, para ninguém ter duvida. A Câmara, no caso de Deputados. O Senado, no caso de senadores. Não há mas, porém, todavia.
E isso e pontdo.
É como bomba atômica. O Brasil assumiu o compromisso constitucional de não desenvolver energia nuclear com fins militares. Está lá e não se discute.
Por que se considera vergonhoso que a Câmara queira definir o destino de seus membros?
Porque está em jogo um princípio: apenas representantes eleitos pelo povo podem cassar o mandato de um representante eleito. Foi essa a grande lição de um país que saía de uma ditadura, iniciada com a promessa de que iria salvar a demoracia.
É uma regra coerente com a noção de soberania popular, de que todos os poderes emanam do povo “que o exerce através de representantes eleitos.”( Está lá, justamente no artigo 1).
Como recorda o deputado Marco Maia, em artigo publicado hoje na Folha de S. Paulo, o artigo 55 nasceu numa votação ampla e plural. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, votaram  a favor.
Aécio Neves, apontado por FHC como candidato para 2014, também. Delfim Netto, que ainda exibia a coroa de tzar do milagre brasileiro da ditadura, também.
Isso quer dizer que havia um consenso político a respeito. Por que?
Não se discutia o motivo das cassações passadas. A imensa  maioria dos casos envolvia perseguição política notória, contra adversários que a ditadura queria   excluir da vida pública. Mas havia  corruptos de verdade entre aqueles que perdiam o mandato. Teve um governador do Paraná que foi afastado depois que foi gravado fazendo um pedido de propina. A fita com a gravação chegou ao Planalto e ele foi degolado.
Os constituintes se encarregaram de definir um ritual democrático para garantir o cumprimento da lei em qualquer caso.Não se queria uma democracia à paraguaia, onde as regras são vagas e pouco claras, permitindo atos arbitrários, como a deposição de um presidente que só teve duas horas para defender-se.
Ao contrário do que ocorre numa ditadura, quando o governo improvisa soluções ao sabor das conveniências e a Constituição é um enfeite para fazer discurso na ONU, numa democracia existem regras, que devem ser cumpridas por todos.
Isso permitiu que, em 1992, o Senado tivesse cassado os direitos políticos de Fernando Collor que, em 1994, julgado pelo Supremo, Collor foi absolvido por falta de provas válidas. Era contraditório? Claro que era.
Mas era o que precisava ser feito, em nome da separação entre poderes. Coubera ao Congresso fazer o julgamento político de Collor. Ao Supremo, coube o julgamento criminal.
No mais prolongado período de liberdades de nossa história moderna, o Brasil aprendeu que a única forma de livrar-se de uma lei errada é
apresentar um projeto de mudança constitucional, reunir votos e ir à luta no Congresso.
Vários artigos da carta de 1988 foram reformados, emendados e até extintos de lá para cá. Quem acha que o artigo 55 está errado, pode seguir o exemplo e tentar modificá-lo. Vamos lembrar quantas mudanças foram feitas nos últimos anos. Mudou-se o caráter de empresa nacional, permitiu-se a reeleição para mandatos executivos e muitas outras coisas mais, não é mesmo?
O caminho democrático é este.
Quem quiser cassar mandato dos deputados, só precisa reunir uma maioria de votos, no Congresso.  Se conseguir, leva. Se não conseguir, paciência.

http://colunas.revistaepoca.globo.com/paulomoreiraleite/2012/12/10/marchadeiras-do-retrocesso/

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