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domingo, 18 de novembro de 2012

1968: importante é construção da memória.


Entrevista Carlos Fico
Publicado em 02-Ago-2008
ESCRITO POR FLAVIANA SERAFIM
Image1968: importante é construção da memória.

Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) apresenta, nesta entrevista exclusiva, uma análise diferenciada sobre 1968. "Esse episódio ficou um pouco estereotipado, mitificado, como se tudo conduzisse a uma corrente única de transformação revolucionária. Não foi bem assim".  Fico discorda da visão mítica tão alardeada sobre aquele período e pondera: "Para mim, o mais importante é justamente pensar: por que em torno desse momento se constituiu uma memória tão forte?".

Mas, afinal, por que 1968 ficou tão emblemático? "Por vários fatores, o primeiro deles, a coincidência toda desses eventos mundiais marcantes e o que ocorria aqui. As manifestações realizadas de março até setembro de 68 foram muito intensas, aconteceram no Brasil inteiro. É natural que haja uma memória forte sobre isso".

Formado em História pela UFRJ e Doutor em História do Brasil República pela USP, Fico tem 25 anos de carreira, um denso currículo e é autor de diversos livros. Há quatro anos, dedica-se a um projeto de pesquisa que analisa as ditaduras do Brasil e Argentina, nas décadas de 60 e 70, e o papel dos Estados Unidos nesses regimes repressivos.
O mais recente livro do historiador -  O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo -  publicado este ano, reafirma o apoio norte-americano ao golpe militar de 1964. "O governo Castelo Branco é de total alinhamento com os Estados Unidos. Teve esse apoio total, inclusive em termos financeiros, com muitos detalhes  que eram secretos até agora". Na obra, Fico aponta o general José Pinheiro de Ulhôa Cintra como o contato entre o então futuro presidente Castelo Branco e o governo de Washington para apoio ao golpe militar.

O historiador não reduz 1968 a uma simples memória, mas ressalta sua importância na realidade histórica. Dos fatos que antecedem o início da didatura até as grandes manifestações de 68, Carlos Fico, especialista em História Social e História do Brasil República, faz questionamentos, lança luz sobre os principais episódios da época e esclarece ao Especial 68 porque os fatos de 40 anos atrás são tão debatidos até hoje.

[Especial 68] Qual a principal marca que 68 deixou no Brasil?

[Carlos Fico] É preciso desmistificar um pouco esse 68. Depende do que a gente esteja falando porque aquilo que se caracteriza como 68 são manifestações sociais que aconteceram num período muito curto, a partir da morte do Edson Luís (março daquele ano) e até agosto, setembro, quando, então, tudo isso se dilui.

Há uma certa leitura que exagera um pouco a importância desses eventos e que nos conecta de maneira muito genérica com outros ocorridos em outras partes do mundo como na França e nos Estados Unidos. 1968 ficou um pouco estereotipado, mitificado, como se todos os episódios daquele ano tivessem uma corrente única de transformação revolucionária. Não foi bem assim.

Quando se pergunta qual marca ficou, no geral existe esse pressuposto com o qual eu não concordo. Eu não penso que tenha deixado, propriamente, uma marca como se algo de espetacular e universal tivesse acontecido.

Para mim, o mais importante é justamente pensar por que em torno desse momento (1968) se constituiu uma memória tão forte. Para mim o que ficou de mais importante foi, realmente,  a constituição dessa memória.
Havia uma grande repulsa,
organizada por setores políticos importantes.

[Especial 68] E porque 68 ficou tão mítico? Essa ligação com os acontecimentos na França e em outros lugares tem a ver com a "onda" daqueles tempos ou ficou tão mítico, entre nós, em função do que se vivia naquele período no Brasil?

[Carlos Fico] Em cada um desses países (que viveu ou foi palco de acontecimentos marcantes de 1968) há histórias que têm raízes em problemas muito peculiares como a questão dos direitos civis e a guerra do Vietã nos EUA, e o problema da burocratização e do elitismo da universidade na França. Na nossa realidade latino-americana havia as ditaduras militares. O "68" da Argentina acontece, na verdade, em 1969, com o "cordobazzo" uma manifestação forte contra a ditadura que havia lá. O "nosso 68" foi em 1968 mesmo.

Quando estabeleço essas diferenças não estou negando que tenham havido coincidências em episódios muito marcantes em diversas partes do mundo. E digo coincidência porque não sabemos como explicar porque precisamente naquele momento, um pouco antes ou depois, esses episódios ocorreram. Mas, certamente, há alguma coisa de comum.

Talvez seja a grande energia amparada, sobretudo, nas manifestações que a juventude conduzia com uma certa ética revolucionária, mas não necessariamente vinculada à esquerda.

Se não fizermos essa desconstrução, tendemos a embarcar numa visão romântica daquele período em que se construiu uma memória – no caso do Brasil - de uma juventude um pouco heróica, romantizada, quando, na verdade, as coisas aconteceram de modo diferente.

Aqui, em grande medida, o que houve e envolveu também a classe média foi uma grande repulsa, organizada por setores políticos importantes, inclusive os comunistas, que assumiu uma conotação ético-moral de condenação à violência que ultrapassou marcos estritamente políticos, quando houve aquela questão tremenda do assassinato do estudante Edson Luís.

Por outro lado, as pessoas também esquecem que naquele momento não havia punições revolucionárias. A ditadura começou em 1964 com o primeirto Ato Institucional que permitia cassar mandatos, direitos políticos, mas isso se estendeu por alguns meses só até junho daquele ano. Aí surgiu a linha dura, os militares que queriam estender essas punições por longo tempo. Eles conseguem isso com o Ato Institucional nº 2, já em outubro de 1965, mas esse ato também tinha um prazo para acabar, que era exatamente o final do mandato do presidente marechal Castelo Branco.

Quando o presidente general Costa e Silva assumiu, em março de 1967, o fez sem a possibilidade de cassar parlamentares ou suspender direitos políticos. Durante 68, as manifestações aconteceram em grande medida porque não havia um desses atos, o AI-5 foi decretado no dia 13 de dezembro daquele ano.
 
O AI-5 é parte e continuidade
de um processo que vinha desde 64 

[Especial 68] O AI-5 viria de qualquer forma, a resistência e a luta armada foram só pretextos, ou se estas não tivessem ocorrido o ato excepcional não teria sido baixado ? 

[Carlos Fico] Viria de qualquer forma, embora seja difícil para um historiador (meu caso) fazer esse tipo de afirmação. Talvez seja um pouco leviano afirmar que ele viria de qualquer forma. Mas com certeza pode-se dizer que havia "projetos" idênticos ao Ato Institucional nº 5. Quando digo "projetos" quero dizer minutas, esboços, algo redigido para que o presidente aprovasse até muito antes de dezembro de 1968.

(A despeito dos dois atos institucionais anteriores, de 1964 e 1965), a linha dura ainda estava insatisfeita com as chamadas punições revolucionárias, como eles diziam, praticadas em 64 – do golpe, em abril, até junho – e com base no AI-2, de outubro de 65 até a posse do Costa e Silva em março de 1967. Ela queria, novamente, um instrumento desse gênero. Por isso não concordo muito com a expressão "golpe dentro do golpe", clássica quando se referem à decretação do AI-5. Dá a impressão de que o AI-5 era uma coisa completamente distinta, quando  na verdade ele é parte e continuidade de um processo que vinha desde 64.

É claro que o AI-5 foi diferente, porque não tinha data para acabar, diferentemente dos dois outros. Isso possibilitou ampliar muito a repressão, mas a natureza do processo era essa demanda da linha dura que vinha desde 1964. É  possível se afirmar com certeza que essa demanda já havia antes das manifestações de 68.

[Especial 68] Outra  polêmica é sobre a luta armada. Há os que afirmam que seu objetivo era uma mudança no país com uma revolução de esquerda. Outros dizem que não havia tinha esse sentido, era parte da luta contra a repressão e pela democracia. Qual a sua conclusão?

[Carlos Fico] Em parte da esquerda, num certo momento – e isso desde antes do golpe militar – havia a discussão sobre a luta armada, sobretudo em função da vitória da revolução cubana. Já havia a discussão e a guerrilha antes do golpe. A opção (pela luta armada), ficou claramente estabelecida nos idos de 68, e não foi decorrência da repressão. A esquerda tem muito essa memória de que veio o AI-5, veio a repressão, não havia opções, espaços na política legal e aí a única saída era a luta armada. Isso é falso. Isso é falso tanto quanto é  quando os militares dizem que o AI-5 só veio porque a esquerda optou pela luta armada.

As pessoas  não gostam quando afirmo isso, mas a verdade é que a ampliação da luta armada não ocorreu por conta do AI-5 e sim da maturação dessas discussões doutrinárias (que vinham de antes de 1964) que levaram certos setores da esquerda a optar pela luta armada que, no Brasil, foi bem inexpressiva.

[Especial 68] Você acha que se tinha outras opções, outros caminhos, fora a luta armada naquele momento?

[Carlos Fico] A luta armada foi uma opção ofensiva, revolucionária, para a derrubada do governo e implantação de um governo revolucionário, socialista. Não era apenas uma luta contra a ditadura. Essa memória de 68 de que a guerrilha urbana, a luta armada eram resistência democrática contra a ditadura é um deslocamento de sentido do que ela realmente se constituiu, (um deslocamento ocorrido) sobretudo a partir da campanha pela anistia (segunda metade da década de 70)..

A opção da luta armada era de ofensiva pela violência, pela derrubada do regime - que naquele momento era uma ditadura - pelas armas e para implantação de um Estado socialista. Não há dúvida quanto a isso. Por isso, acho importante que a memória seja estudada mais do que os episódios conhecidos.

Por que a memória desses setores da esquerda operou essa transformação? Porque aquela opção pela luta armada no passado, hoje parece claramente um equívoco. Naquele momento não o era, não foi para essas pessoas. (não pareceu equívoco) Até pela conjuntura que se vivia de real vitória da revolução cubana.

Com o passar do tempo, com a campanha da anistia, sobretudo depois do fim da ditadura, e com a necessidade dessas pessoas se reposicionarem no cenário político, a memória vai operando esse tipo de deslocamento de sentido. Assim como acontece com a memória dos militares, também. Enfrentar a questão da tortura e do assassinato de militantes da esquerda para os militares é uma coisa gravíssima. Então, operou-se, também, um certo deslocamento de sentido na memória militar que situa o AI-5 como uma reação à luta armada. 
"Mas professor, a esquerda
parecia mesmo muito forte." 

[Especial 68] Muitos militares também fazem referência às ações da esquerda que causaram mortes de civis.

[Carlos Fico] É. Tenho um exemplo curioso. Quando entrevistei um general, que era um homem moderado da época da ditadura, ele me disse: "Mas professor, a esquerda parecia mesmo muito forte. Nós tínhamos que decretar o AI-5 (decretado em 13 de dezembro de 1968). Eles até seqüestraram o embaixador norte-americano". Aí, falei: "Mas general, o senhor está esquecendo que o seqüestro foi depois (setembro de 1969) do AI-5?". Quer dizer, ele não estava mentindo para mim.

Isso é uma crença, uma memória que se estabelece, que essas pessoas incorporam,  assim como ocorre com a esquerda, que optou pela luta armada, que considera que esta era uma resistência democrática.
[Especial 68] Como você analisa 68 no Brasil e em outros países? Na França, por exemplo, não se dizer que os resultados foram  um "mar de rosas", mas os fatos aconteceram de outro jeito. Até porque lá não havia uma ditadura como aqui.

[Carlos Fico] O que há de diferente mesmo naquele ano, no Brasil em relação aos outros países é essa situação de ditadura, de uma completa anormalidade política que nós tínhamos e muitos deles não - a ditadura que enseja a possibilidade, ou a justificativa da opção pela guerrilha urbana e pela luta armada. Em alguns países, como na Argentina, em 69, quando aconteceu o "Cordobazzo" que mencionei, se inauguraria um processo de grande violência não só da repressão, mas da própria esquerda. Essa violência não foi tão grande aqui no Brasil, embora tenhamos tido um processo duro também. Na Argentina foi muito pior para os dois lados.

O dado realmente diferenciador é o fato de que o nosso problema era a ditadura militar, ou as ditaduras se quisermos falar da América Latina em geral. A problemática nos EUA era o Vietnã. E o fato de a conjuntura toda estar então muito conturbada lá em função, também, da violência dos assassinatos de lideranças famosas como (o senador democrata e pré-candidato a presidente) Robert Kennedy e (o reverendo negro) Martin Luther King.

Nos EUA o ano já começou de forma muito tremenda com a ofensiva do Tet na Guerra do Vietnã (quando o Exército norte-vietnamita e os guerrilheiros vietcongues fizeram a maior ofensiva do conflito, a partir de 31 de janeiro de 1968, quando os vietnamitas comemoravam seu Ano Novo lunar, chamado de Tet). O desencadeamento da ofensiva do Tet ampliou muito as manifestações contra a guerra. A quase tomada da embaixada norte-americana (em Saigon) foi divulgada pelas televisões e isso foi muito marcante, muito forte nos EUA.

As manifestações na França são as mais conhecidas e aí temos um dado, que talvez seja unificador (de todas as demais pelo mundo), que foi a possibilidade dos meios de comunicação de massa divulgarem prontamente, por meio da televisão e da fotografia em jornais e revistas, as imagens muito dramáticas desses episódios.

A ofensiva Tet, por exemplo, foi muito mais comentada pela esquerda brasileira, até porque aconteceu no início do ano, do que o próprio maio de 68 no mundo. Essas conexões de alguma forma estão ligadas aos meios de comunicação de massa. É bastante provável que um jovem que estava aqui jogando pedra na polícia em 68 tivesse na sua mente toda essa conflagração, sobretudo o movimento nos EUA contra a guerra do Vietnã que era o mais conhecido.

[Especial 68] Havia um sentimento anti-americano?

[Carlos Fico] Havia isso também. Então, o movimento dos norte-americanos contra a guerra do Vietnã era visto com muita simpatia aqui. Mas as conjunções específicas eram muito peculiares.
Nós temos uma vasta documentação
produzida pela ditadura 
[Especial 68] Em suas pesquisas, o que você descobriu nos arquivos da ditadura e porque eles não foram abertos até hoje? 
[Carlos Fico] Não é bem assim, não. Aliás, o José Dirceu tem uma importância grande nesse setor em relação à abertura dos arquivos porque o Arquivo Nacional é vinculado à Casa Civil atualmente e foi na gestão dele que isso se iniciou, que essa vinculação se deu. Nós, historiadores, fizemos uma manifestação grande e o José Dirceu nos recebeu, nos acolheu favoravelmente no sentido de que alguns acervos fossem transferidos para o Arquivo Nacional. Isso (a transferência) ocorreu e continuou na gestão da ministra Dilma Roussef.

Então, hoje no Brasil, ao contrário do que as pessoas acham, temos uma vasta documentação produzida pela ditadura, constituída de documentos outrora secretos. O governo do Lula tem esse dado positivo.

Tem o acervo do SNI (Serviço Nacional de Informações), do Conselho de Segurança Nacional, do CIE (Centro de Informações do Exército), do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha) e do CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica). Estes acervos, apesar dos chefes da Casa Civil – o José Dirceu e a Dilma Roussef neste governo - terem determinado que fossem transferidos, não foram, não houve ainda essa transferência. Então, temos ainda esse problema, assim como temos em relação aos documentos que estão em Brasília, no SNI e no Conselho de Segurança Nacional.

A lei brasileira, assim como a de outros países, restringe por cem anos o acesso aos documentos em função do segredo de Justiça e do direito a privacidade. A consulta é possível só se você tiver a autorização da pessoa. Aliás, curiosamente, o Arquivo Nacional, quando uma vítima vai lá e pega o seu próprio dossiê, propõe que a pessoa deixe uma autorização para que os historiadores também o consultem. Mas o curioso é que ninguém deixa! É raríssimo, apenas uns 5% deixam que os historiadores consultem.

Existe essa restrição que não é dos militares, mas da própria lei. É importante que exista essa legislação, embora 100 anos seja um pouco demais. Mas é um direito consagrado internacionalmente. (independente disso) Temos até uma boa quantidade de documentos.

[Especial 68] Para você conclui que 1968 acabou ficando tão marcante por conta do "romantismo", dos líderes dos movimentos daquele ano serem identificados com algo heróico, ou foi a violência daquele tempoque o deixou assim?

[Carlos Fico] Foram vários fatores. Primeira a coincidência toda desses eventos mundiais, marcantes. Aqui, claro, as manifestações realizadas de março até setembro de 1968 foram muito fortes, aconteceram no Brasil inteiro. Além da Passeata dos 100 Mil, uma manifestação "autorizada" pelo governador Negrão de Lima (do então Estado da Guanabara), ocorreram muitos outros eventos, também  muito numerosos. É natural que haja, que tenha ficado uma memória forte sobre isso.

O outro problema é que essas manifestações, assim como a chamada guerrilha urbana, aquelas ações armadas que começaram a acontecer ao longo de 68 – assaltos a banco, roubos de armas militares e mesmo os  assassinatos de militares estrangeiros praticados pela esquerda – foram mesmo dramáticos. E serviram, todos, de pretexto para a ditadura retomar a temporada de punições, assim como ela utilizou para decretar o AI-5 o discurso do então deputado Márcio Moreira Alves (MDB-RJ), que era, já então, um deputado muito conhecido porque tinha denunciado a tortura em 1964.

A Universidade de Brasília (UnB) foi invadida em meados de agosto, no contexto das manifestações daquele ano e essa invasão já foi uma ação comandada por provocadores. Sabemos isso hoje, claramente, através da documentação. Eram provocadores da ditadura, militares da linha dura, que fomentaram aquela invasão para criar um clima de baderna, de desordem porque eles sabiam que haveria resistência dos estudantes. E foi o que correu. O episódio foi todo muito violento e teve muita repercussão, porque até mesmo os parlamentares da Arena (Aliança Renovadora Nacional, o partido que dava sustentação política aos governos militares) que apoiavam a ditadura, protestaram contra a violência da invasão. Era exatamente o que os provocadores queriam.
Foi exatamente nesse contexto que o Márcio Moreira Alves fez aqueles dois discursos que não tiveram grande repercussão no momento em que os fez, mas os militares os utilizaram como pretexto para suas ações.

[Especial 68] Queriam, estavam preparados, só esperando qualquer pretexto...

[Carlos Fico] Qualquer coisa, qualquer pretexto. Os militares copiaram e divulgaram os discursos nos quartéis. Nos discursos ele usou expressões um pouco infelizes, chamava o Exército de XX de torturadores, umas coisas assim. E propunha, no que ficou conhecido como "discurso desista", que as meninas e as mulheres não fossem aos bailes dançar com os cadetes no dia 7 de Setembro. O discurso foi no dia 3 ou 4 de setembro. Os militares protestaram e você tem de setembro até dezembro os piores meses porque fica toda essa dúvida sobre se a Câmara dos Deputados iria ou não conceder licença para o Márcio Moreira Alves ser processado pelo no Supremo Tribunal Federal.

No dia 12 de dezembro a Câmara votou, muito emocionadamente, contra a licença. A licença não foi dada, ao término da sessão cantaram o hino nacional e, no dia 13 de dezembro, os militares decretaram o AI5. Para mim 1968 terminou, então, em setembro. O nosso 1968 começa com o assassinato do Edson Luís e acaba aí, quando os militares expressam essa suposta (porque utilizaram como pretexto) indignação contra o discurso. 
A Operação Brother Sam 
foi decidida em 1963 
[Especial 68] Você escreveu um  livro sobre a relação entre os Estados Unidos e as ditaduras no Brasil e na Argentina. O que você descobriu nas suas pesquisas e qual foi o papel dos Estados Unidos no golpe militar aqui? 
[Carlos Fico] O papel foi grande, essa participação foi grande. Essa pesquisa é um projeto que ainda vai durar cerca de oito anos. Eu conclui a primeira etapa publicando esse livro chamado O Grande Irmão, que diz respeito a parte do Brasil. Em relação ao Brasil e ao golpe de 1964, o Departamento de Estado americano tinha planos de contingência para pensar em como se comportar em situações de risco, de crise. É justamente o plano que previa a necessidade do golpe e é um dos documentos que divulgo no meu livro livro O Grande Irmão.

É curioso porque eles estabelecem nesse documento, de novembro de 1963 - portanto feito ainda na gestão do presidente John Kennedy -  exatamente aquilo que aconteceu em março. Estabeleceram a derrubada do presidente João Goulart, o Jango, a constituição do Comando Supremo da Revolução, a posse no lugar de Jango, do então presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli, a escolha de um novo presidente, que foi o marechal Castelo Branco, eleito pelo Congresso Nacional da maneira como a gente sabe.

Mais do que isso, detalharam ainda uma estratégia que não foi necessária, mas que se realizou, que era o governo de um grande Estado, no caso foi Minas Gerais, declarar-se em situação de beligerância contra o governo federal de João Goulart. O plano estabelecia que aí o governo dos Estados Unidos reconheceriam este como sendo o governo alternativo do Brasil.

A escolha recaiu em Minas, porque o seu governador na época, Magalhães Pinto, era um dos maiores opositores do governo Goulart. Ele, o governador de São Paulo, Adhemar de Barros e o do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda. Magalhães Pinto foi escolhido porque o Estado de Minas tinha um enorme efetivo de Polícia Militar. Ele nomeou secretários estaduais sem Pasta, como o Afonso Arinos de Mello Franco, com a incumbência de negociar o reconhecimento do novo governo brasileiro, que seria o de Minas à época, no caso de João Goulart ter resistido.
Tudo o que de fato aconteceu, está estabelecido no plano de contingência norte americano. Eu também descobri que a Operação Brother Sam,- pela qual mandaram navios petroleiros, armas, etc - tida apenas como uma operação decidida no calor dos acontecimentos para o caso de faltar combustível, na verdade fora decidida desde o ano anterior, em 1963.

Também se dizia que a Operação Brother Sam fora conduzida pelas forças armadas norte-americanas e que não havia a participação de nenhum brasileiro. Na documentação que pesquisei fica claro o nome do general brasileiro, Ulhoa Cintra, braço direito do marechal Castelo Branco nessa ponte entre militares brasileiros e norte-americanos.
O general Ulhoa Cintra fora cadete do marechal Castelo Branco, atuara com ele na Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, na II Guerra Mundial. Era um homem de sua total confiança e foi o elemento de ligação com os norte-americanos. Sua atuação desmente a tese de que a Operação Brother Sam foi deflagrada apenas no calor da hora, dos acontecimentos.

[Especial 68] Essa relação (com militares americanos) se manteve ao longo da ditadura? Como foram os contatos?

[Carlos Fico] A relação se manteve, sim. O governo Castelo Branco foi de total alinhamento com os Estados Unidos. Não por acaso, mas porque teve esse apoio total inclusive financeiro, dado que  era secreto até agora. Há uma equação financeira de auxílio, de empréstimos, de atuação dos Estados Unidos,muito especial, muito extraordinária,  junto aos bancos europeus para renegociação da dívida externa brasileira.
Tanto foi assim que o governo Castelo Branco mandou tropas para invasão da República Dominicana pelos Estados Unidos, feita com apoio total e, inclusive, militar, do Brasil.
Não é só aqui que temos
documentos secretos
[Especial 68] E a pesquisa dessa documentação fora do país? Como foi o acesso e qual é o tratamento de documentos deste tipo nos Estados Unidos?

[Carlos Fico] Assim como no Brasil, lá também os documentos secretos são liberados paulatinamente dependendo do grau de sigilo. Eles não tem exatamente uma classificação igual a nossa, mas em alguns pontos ela é semelhante. Para termos uma idéia, aqui os documentos reservados ficam retidos por cinco anos, os confidenciais por 10 e os secretos por 30 anos. Nos Estados Unidos há uma classificação semelhante.

Paulatinamente, os documentos vão sendo liberados e os historiadores voltam a esses temas. Desde que você tenha um visto e possa viajar, qualquer um pode pesquisar, assim como aqui no Brasil. E lá também há restrições. Quando pedimos um documento ele é entregue, mas nomes próprios vêm riscados em alguns casos. Essa sistemática é comum praticamente no mundo inteiro. Não é só aqui que temos documentos secretos.

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