A Marcha da Família contra a Ditadura Gay
17 de Março de 2014
Maíra Kubík Mano
Em 19 de março 1964, as mulheres foram protagonistas da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, dias antes do golpe que depôs o presidente João Goulart e mergulhou o Brasil na sua longa ditadura civil-militar.
Em sua maioria, elas eram oriundas das classes médias e lançaram-se às ruas para responder ao apelo de setores conservadores, que lhes solicitavam assumir o papel de “donas-de-casa e mães de família”, salvando, assim, a pátria do comunismo. A consequência foi o apoio político-emocional ao golpe.
“No geral”, apontam as pesquisadoras Santana, Freire e Costa, “elas trabalhavam organizadas em pequenos grupos, fazendo reuniões, disseminando sua ideologia, divulgando suas tarefas e convocando especialmente outras mulheres através de programas de rádio, escrevendo e enviando telegramas, cartas e panfletos exaltando e defendendo valores e crenças cristãs e alertando contra a ameaça comunista. A imagem simbólica criada para o Comunismo identificava-o, não como um sistema político-econômico, mas como uma doutrina vinculada à destruição dos valores cristãos, da família e da propriedade. Esse discurso anti-comunista encontrou eco na classe média, que, insegura, via a possibilidade da perda de suas propriedades e dos valores burgueses já introjetados.”
Agora, às vésperas da celebração de 50 anos do golpe, há quem queira reeditar a Marcha. E o que está em questão obviamente não é apenas uma efeméride. Seus organizadores têm pautas bastante atuais: pensam em construir um país “ficha limpa” e livre de corrupção e, para isso, pedem a intervenção dos militares. Junto com aquela senhora amiga do cineasta rico “pra caralho” que discutiu com o Batman no Leblon, eles também acreditam que esteja em curso uma revolução de esquerda — embora esse termo tenha sofrido uma grande mutação desde 1964.
Outros slogans são o “direito à vida desde a concepção”, o “direito à família” e “à liberdade religiosa”, bastante semelhantes ao utilizados por aqueles que acreditam que também estejamos a um passo de uma “ditadura gay”, apoiada pelas “feminazis”. A imagem que convoca tal mobilização também é simbólica: traz a bandeira do Brasil ao fundo e, à frente, uma mulher, um homem e uma criança obviamente brancos. O homem está segurando a bíblia e, assim sendo, é o líder do grupo. E a mulher, assim como em 1964, é novamente convocada a assumir sue papel “natural” de mãe e esposa.
Dizem-se ameaçados por elxs, xs comunistas, feministas, movimento LGBT*. “Querem acabar com o nosso modo de vida e temos que reagir”. “Ditadura da minoria sobre a maioria”, clamam. O que está por trás é óbvio: a manutenção de privilégios de quem não quer ceder nada àqueles que estão posicionados hierarquicamente abaixo na sociedade.
Assim, à qualquer movimento de abertura da sociedade, como uma discussão pela extensão de direitos — por exemplo, do casamento homossexual ou do aborto —, respondem com o seu fechamento. O mesmo vale para o enfrentamento à corrupção: no lugar de repensarmos a democracia brasileira, escolhem negá-la e reivindicam a saída autoritária.
Ao contrário do que afirma seu discurso, querem restringir toda possibilidade efetiva de transformação da sociedade. O mesmo vale para os que organizam milícias contra indígenas no Mato Grosso do Sul. Ou que felicitam-se pelo governo federal não ter distribuídos mais terras e gritam contra as cotas para negrxs no ensino e no funcionalismo públicos. Ou acham que os garis cariocas não tinham motivos para entrarem em greve e que as vítimas de violência sexual não devem receber a pílula do dia seguinte. E que defendem em rede nacional de televisão que pessoas sejam linchadas em praça pública
A Marcha em si pode ser um evento bastante limitado, mas ela representa o pensamento de uma parcela significativa da sociedade brasileira. Ao nacionalismo, junta-se o discurso odioso da supremacia branca, hetero, cis, masculina e burguesa, instrumentalizado por certas igrejas.
O alento é que há resistências. Uma delas, também em formato de Marcha, dessa vez antifascista, sairá às 15h30 do próximo sábado, 22/03, da Praça da Sé, em São Paulo. Contra o autoritarismo, a liberdade. O horizonte utópico permanece aberto, a despeito de propagandas contrárias.
http://mairakubik.cartacapital.com.br/2014/03/17/a-marcha-da-familia-contra-a-ditadura-gay-2/
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