A escrita biográfica é uma tarefa muito difícil e tem suas
armadilhas. Como narrar a vida de uma pessoa, mostrando suas
contradições humanas e ao mesmo tempo inserindo-a no contexto em que
vivia, sem deixar a história de lado? A mais recente biografia de Carlos
Marighella, do jornalista Mário Magalhães, lançada no final de 2012,
consegue articular essas duas questões com algum êxito. Marighella já
havia ganhado outras biografias, livros e filmes sobre sua vida, mas
nenhuma delas foi capaz (ou nem se propôs a isso, muitas vezes) de
reconstruir em detalhes alguns passos de sua vida, como diálogos,
sentimentos, sensações e descrições de situações até então pouco
conhecidas.
Tudo isso foi possível por meio do longo (quase uma década) trabalho
de pesquisa em documentos oficiais dos órgãos de segurança, jornais de
época, depoimentos de pessoas contemporâneas aos fatos narrados, a
historiografia de cada período e o posterior cruzamento de todas as
informações coletadas. Ao final do livro há notas com referências sobre a
origem de cada informação. São mais de 2.500 notas, 260 entrevistas e
quase seiscentos consultados na bibliografia, além de jornais, revistas e
arquivos oficiais (incluindo o Arquivo Estatal Russo de História
Político-Social e o Arquivo do Superior Tribunal Militar).
Existem,
a meu ver, dois tipos possíveis de leitor para esse livro, e para cada
um deles será interessante em pontos distintos. Para o “não iniciado” no
assunto, que tem pouco contato com a história do Brasil, dos movimentos
de esquerda etc., o livro é rico, pois consegue dar um panorama da
história dos movimentos progressistas brasileiros, claro, com ênfase na
história de Marighella. Para aqueles que já têm contato com o assunto,
estudam ou viveram o período retratado, tem o valor de juntar
informações, cruzar histórias e elaborar uma “síntese” de alguns dos
acontecimentos mais importantes da luta contra a ditadura.
Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo
está dividido em três partes, além do prólogo e do epílogo. A primeira
busca as origens de Carlos Marighella. Fala da história de seus pais,
seu nascimento, em 1911 na Bahia, passando por toda a sua militância na
juventude e terminando com sua saída da prisão em 1945, depois de sete
anos. A segunda começa nesse momento, passa por sua eleição como
deputado constituinte em 1946, a morte de Getúlio em 1954, as denúncias
de Khruschov em 1956, chegando até as vésperas do golpe de 1964. A
terceira parte, a maior de todas, começa no golpe e vai até sua morte,
em 4 de novembro de 1969. Conta como foi o período durante a ditadura, a
saída do PCB e a formação da ALN, o contato com os cubanos, a repressão
etc.
Marighella dedicou grande parte de sua vida ao comunismo,
ao PCB e à construção de uma nova sociedade. Sua formação política e
ideológica levou-o ao caminho revolucionário das armas e do embate
direto com as forças reacionárias e autoritárias depois do golpe de 1º
de abril de 1964. As divergências com o PCB fizeram com que ele buscasse
novas formas de luta e de organização, diferentes daquelas vigentes até
então. O PCB ficou para trás, historicamente, ao aceitar as diretrizes
do PCUS de coexistência pacífica e caminho pacífico para o socialismo,
presentes nas Declarações de março de 1958. Ao não estar preparado para o
golpe de 1964 e, consequentemente, não resistir, o PCB mostrava
claramente sua visão da luta política naquela situação. A direita tentou
o golpe inúmeras vezes desde 1950, procurando impedir a posse de
Getúlio Vargas (1950); depois, em sua queda e suicídio, em 1954;
provocando a queda de Jânio, em 1961; com o golpe do parlamentarismo no
mesmo ano, até o golpe de 1964, que finalmente depôs João Goulart. Isso
mostra que aquele que duvidasse do caráter golpista da direita,
associada ao imperialismo estadunidense, poderia incorrer em grave erro.
Marighella
se mostrou um crítico, na prática, das formulações do PCB, tanto no que
diz respeito a tática e estratégia quanto na forma de organização. Não
por acaso a ALN tinha “Ação” no nome, pois ele acreditava que ela seria a
catalisadora das massas. Por outro lado, propôs uma organização nova,
menos centralizada e burocratizada, na qual não era preciso, em geral,
pedir licença para fazer uma ação revolucionária. A Ação Libertadora
Nacional estava estruturada em três setores basicamente: o militar, que
tinha os Grupos Táticos Armados (GTA); o de logística, ou de apoio; e a
frente de massas. Segundo consta do “Pronunciamento” do Agrupamento
Comunista, embrião da ALN, de 1968:
“Seus princípios ‘são três: o primeiro é que o dever de todo
revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença
para praticar atos revolucionários; e o terceiro é que só temos
compromisso com a revolução’. Simplificou: ‘o conceito teórico pelo qual
nos guiamos é o de que a ação faz a vanguarda’. E encerrou a conversa:
‘A mesa das discussões hoje em dia já não une os revolucionários. O que
une os revolucionários brasileiros é desencadear a ação, e a ação é a
guerrilha’” (p. 361-362).
http://www.teoriaedebate.org.br/estantes/livros/marighella-o-guerrilheiro-que-incendiou-o-mundo
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