Papa Francisco se encontra com os 114 cardeais na tradicional Sala Clementina do Vaticano
Se o novo papa, o jesuíta Bergoglio, escolheu o nome de Francisco
pensando em são Francisco de Assis, como logo interpretou a comunidade
cristã mundial, e não em são Francisco Xavier, teríamos pela primeira
vez um curioso e emblemático enxerto de um jesuíta franciscano.
GESTOS DE HUMILDADE
Brasileiro pega mesmo ônibus que papa e recebe bênção do pontífice
Papa paga hotel do próprio bolso e troca limusine por ônibus
Se há duas ordens religiosas mais diferentes são elas a Companhia de
Jesus, fundada por Inácio de Loyola para preparar intelectualmente as
elites da sociedade e sondar o mundo da cultura, da ciência e da arte, e
a Ordem Franciscana, fundada pelo Pobrezinho de Assis, que se
caracteriza por sua aproximação das pessoas mais simples, dos mais
pobres.
Na Idade Média, quando ainda não existiam os bombeiros, os franciscanos
se ofereciam para apagar os incêndios, o que os tornou muito populares.
O fato de um papa jesuíta ter escolhido, pela primeira vez em 2.000
anos, o nome de Francisco não deixa de ter um valor simbólico e gestual.
Na verdade, os cardeais da periferia da igreja, que são os que o
elegeram, o fizeram mais por suas características franciscanas que
jesuíticas, por seu estilo de vida simples como cardeal, sua proximidade
dos mais pobres e sua forte espiritualidade para se contrapor às sujas
manobras vaticanas.
Perguntaram-me em várias entrevistas de rádio e TV o que pode
significar para a igreja um papa jesuíta. Para responder, é preciso
lembrar que esse jesuíta se chama papa Francisco.
Papa
Francisco, 76, acena para multidão na sacada da Basílica de São Pedro,
no Vaticano. O cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi escolhido o
novo papa após cinco escrutínios Leia maisMichael Kappeler/EFE
E é preciso remontar, para entendê-lo melhor, a quando o Concílio
Vaticano 2º, que representou a grande conversão da Companhia de Jesus,
que de uma ordem dedicada ao estudo, ao ensino e às elites passou a
empenhar-se também nas vanguardas da Igreja, promovendo a Teologia da
Libertação na América Latina e chegando a flertar com certas guerrilhas
de libertação.
Foi então que em El Salvador começaram a pagar com a vida. Ali foram
crivados de balas seis professores jesuítas e duas mulheres que cuidavam
da casa. De noite, enquanto dormiam, por traição. Seu pecado foi
defender a causa dos pobres e propiciar um diálogo entre as duas partes
em conflito na guerrilha.
E quem escrevia os discursos incendiados contra os poderosos para
monsenhor Romero, também assassinado pelos militares, desta vez enquanto
celebrava a eucaristia, era um teólogo jesuíta.
Essa transformação da Companhia de Jesus --que das universidades desceu
às favelas e à violência das comunidades mais pobres da América
Latina-- valeu ao carismático e místico superior geral, o padre Pedro
Arrupe --o médico basco que em Hiroshima, no dia da tragédia atómica,
operou com tesouras de costura no meio dos escombros--, uma ruptura com o
então papa João Paulo 2º.
ABORTO:
A posição do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, agora papa
Francisco, sobre o tema é bastante enfática. Para ele, o aborto é uma
tentativa de "limitar e eliminar o valor supremo da vida e ignorar os
direitos das crianças que nascerão" Leia maisCathal McNaughton/Reuters
Tive oportunidade de escutar do padre Arrupe uma série de confidências
nas semanas em que passei muitas horas com ele para filmar uma
reportagem de uma hora para a RAI (TV da Itália), intitulada "O Papa
Negro".
Arrupe, que era de uma espiritualidade tão forte e autêntica que
impressionou a equipe de TV agnóstica que me acompanhava, contou-me, por
exemplo, sobre a mudança que o concílio causou: "Quando hoje vemos a
Opus Dei atuar é como se olhássemos no espelho para dizer: 'Assim fomos e
assim não podemos continuar'".
E mudaram. Antes do concílio eram 36 mil na companhia. No concílio
perderam cerca de 10 mil, ao mesmo tempo que começaram a atuar em novos
campos de ação.
O papa João Paulo 2º me contou que já tinha escolhido a Opus Dei como
seu escudo em vez dos jesuítas, que são os únicos religiosos da igreja
que, além dos três votos, fazem um quarto voto de "obediência ao papa".
O
blog esportivo "Canchallena", do jornal argentino "La Nación" deu
destaque para as postagens de charges dos usuários do Twitter, que
comemoraram a eleição do papa Francisco. A charge acima é do cartunista
argentino Lucho Luna Leia maisReprodução/Lucho Luna
Quando o papa polonês recebeu no Vaticano o padre Arrupe e sua equipe,
disse-lhes: "Vocês foram motivo de preocupação para meus antecessores e
continuam sendo para o papa que lhes fala".
Arrupe me contou que em seguida pensou em se demitir. Teve um encontro a
sós com o papa. "João Paulo 2º me pediu para me ajoelhar", relatou. E
acrescentou: "E me lembrou que os jesuítas devem obediência especial ao
pontífice".
No final, João Paulo 2º pediu a Arrupe que não se demitisse. Temia que
um novo general pudesse ser mais duro e com o qual pudesse ter mais
choques, dada a tensão que existia naquele momento entre a Companhia de
Jesus e o Vaticano.
Algo que chocou e impressionou meus colegas técnicos da RAI foi quando
Arrupe me falou do que significava para ele a morte. O operador de TV
teve que parar a gravação por alguns minutos e via-se que estava
emocionado. Soube depois que mais adiante aquele operador de câmera se
apresentou um dia na Casa Generalícia dos jesuítas para pedir que Arrupe
rezasse por uma filha dele muito doente.
Papa Urbano 8º, comandou a Igreja Católica entre 1623 e 1644 Divulgação
O padre Arrupe, já doente e entristecido, embora nunca deprimido, foi
substituído pelo holandês Peter Hans Kolvenbach, que curiosamente tinha
hábitos em Roma --onde dava aulas-- muito parecidos com os do cardeal
Jorge Bergoglio em Buenos Aires. Lembro de tê-lo visto de ônibus, de
bicicleta ou a pé. Rezava na posição de lótus dos iogues, fazia
meditação hindu e era vegetariano.
Portanto, talvez, pelo menos depois do concílio, o matrimônio
jesuíta-franciscano não seja tão estranho quanto parece. Francisco de
Assis, segundo alguns historiadores, pertencia a um grupo sufi islâmico e
realizava ritos do tipo sufi com seus primeiros companheiros de
aventura. Talvez o papa Francisco seja capaz de encarnar as
características das duas maiores forças --junto aos dominicanos-- que a
Igreja Católica possui.
Tudo isso, como me dizia Arrupe, "graças ao milagre do concílio"
promulgado por um papa idoso com o qual, segundo os romanos, se parece
de alguma forma o papa jesuíta franciscano.
Veja vídeos sobre escolha do novo papa - 42 vídeos
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